Acary Souza Bulle Oliveira é Neurologista

Durante o meu curso de medicina, na Escola Paulista de Medicina, de 1976 a 1981, fui estimulado pelos eméritos professores a entender o significado das palavras impressas nos livros. Diziam eles, quantas maravilhas, quantas coisas insuspeitadas descobriríamos se soubéssemos dissecar as palavras, quebrar-lhes a casca e libertar o espírito e a divina luz que elas encerram. São elas que ensinam o mistério das coisas e desvendam as verdades mais recônditas, um verdadeiro poder.
De acordo com N. Scott Momaday, em “O encanto sagrado das palavras; poder é linguagem”. O termo poder está em todos os lugares no nosso mundo. Mas o que, realmente, é poder? A verdade é que a palavra tem imensa carga de interpretações e as definições são múltiplas. Mas poder é uma palavra.

As palavras são poderosas. Nada é mais poderoso. Elas são símbolos conceituais, com propriedades denotativas e conotativas. A palavra “poder” denota força, força física, resistência. Mas conota algo mais sutil: persuasão, sugestão, inspiração, segurança. Por exemplo, a palavra “holocausto” assusta; a palavra “filho” encanta; a palavra “amor” confunde; a palavra “Deus” mistifica.

Assim, eu tenho vivido a minha vida sob o feitiço das palavras; elas empoderam a minha mente. Elas me fascinam e entusiasmam. Alimentam minha imaginação e a minha alma. A descoberta tem-me levado para um caminho maravilhoso, de realizações e com menos medo,

Os melhores ensinamentos? Deve-se falar com responsabilidade, escutar com atenção e lembrar-se do que diz. Há uma receita navajo para pacificar um inimigo. Assim diz:

Ponha os pés no chão com pólen.
Abaixe as mãos com pólen.
Abaixe a cabeça com pólen
Então seus pés são pólen.
Suas mãos são pólen.
Seu corpo é pólen.
Sua mente é pólen.
Sua voz é pólen.
A trilha é linda.
Fique imóvel.

Entretanto, mesmo lendo muito, havia uma matéria desafiadora, misteriosa, imprevisível e até amedrontadora: a neurologia. Anatomia, fisiologia, síndromes e quantas palavras difíceis; talvez, seja por isso que decidi enfrentá-la.

Após 39 anos, acho que consegui, em parte tornar-me neurologista. Qual foi a minha principal estratégia? Apoiar-me nos ensinamentos dos sábios. Por isso, procurava não perder os encontros, jornadas, simpósios e congressos.

Em um deles, há pouco menos de duas décadas, assisti a uma aula de um menino que, realmente, impactou-me: Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). ELA é uma doença neurodegenerativa caracterizada por causar paralisia motora, progressiva, irreversível, incurável, incapacitante, com mortalidade cerca de três a cinco anos após o início dos sintomas, representando uma das mais temidas enfermidades pelos médicos neurologistas. A aula não foi só de aspectos anatômicos, fisiológicos, patológicos, clínicos. As palavras dissecadas em sua essência eram apresentadas cirurgicamente e com significados precisos. Tudo fazia sentido, uma verdadeira epifania (súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo). O professor? Marco Orsini, professor em essência.

Desde então, os nossos caminhos não se cruzaram mais. Eles andaram juntos. “A ação humana não criou a teia da vida: nós somos um fio dela. Tudo o que fazemos para a teia fazemos para nós mesmos. Todas as coisas estão ligadas” (Chefe Seattle – 1786-1886, Nação Suquamish).

Foram outras aulas, sua entrada na Faculdade de Medicina, Mestrado e Doutorado concluídos durante a realização do curso médico, artigos científicos, participação em Associações de pacientes (ABrELA, Vozes da Polio), constituição de família, nascimento dos filhos. Tudo compartilhado com maestria e alegria, tendo como base O ENCANTO SAGRADO DAS PALAVRAS.

As etapas vencidas não foram sem perdas ou angústias, tanto em plano pessoal, quanto no familiar e até profissional. As crônicas semanais (Folha de Niterói, Folhanit online), cheias de histórias familiares e do cotidiano representam muito mais do que os cinco sentidos humanos (visão, olfato, paladar, auditivo, táctil). Através de uma linguagem abstrata, permite que enxerguemos e sintamos coisas que antes se encontravam em um ponto cego da percepção. Faz até que os momentos terríveis sejam compreendidos e não se transformem em trauma.

Nas histórias, percebe-se a expansão da nossa compreensão: INTUIÇÃO (do latim intuitione, “in” (em, dentro) e”tuere“ (olhar para, guardar), capacidade de perceber, discernir ou pressentir uma explicação independentemente de qualquer raciocínio ou análise; CLARIVIDÊNCIA: a visão espiritual. Faculdade de ver à distância sem o emprego dos olhos. Acontece durante os sonhos, onde a alma tem a faculdade de perceber eventos que acontecem em outros lugares.

São textos de vida que permitem a experimentação de várias formas de emoção, que não se expressa apenas falando. Vive-se com todo o corpo. os sentimentos, as linguagens e os pensamentos imbricados, interagindo constantemente na concatenação de argumentos e noções carregados de significados. Realmente, não existe nenhuma ação humana sem uma emoção.
Mas foram os homens que criaram as palavras ou elas já se encontravam em algum lugar e escolheram um corpo para se abrigarem e se expressarem?

Quando, em um momento de minha vida, eu tive a oportunidade de trabalhar no Alto Xingu, os índios diziam que a escolha do nome de uma criança era baseada na leitura do momento. O nome era escolhido pelos espíritos, cujos sinais os pais teriam que decifrar. O nome tem uma grande importância, pois ele representa muito mais do que um signo. Ele representa a missão daquela criatura e se aquele ser não se desviar do seu destino, ele viverá com dignidade e honra.

O que teria levado aos nomes Marco Antonio Orsini. O que seus pais teriam lido e interpretado?
O nome Marco vem do latim Marcus, e tem o mesmo significado que Marcos e Márcio que é “relativo a Marte”, ou “dedicado a Marte”, o deus romano da guerra. “Guerreiro” ou “marcial”. Este nome se relaciona com as ações, sejam elas simples ou grandiosas, cuja representação está na luta por algo em que se acredita piamente sem nunca desistir. Marco também simboliza um lugar e/ou um acontecimento importante: este obelisco é o marco da fundação da cidade.

Antônio, talvez o nome mais popular da antroponímia portuguesa, permanece de origem obscura, se bem que alguns lhe encontrem etimologia etrusca que deu em latim ‘antonius’, “inestimável”, ou etimologia grega, ‘antheos’ anthonomos’, “que se alimenta de flores”. Assim Antonio significa “valioso”, “de valor inestimável”, “digno de apreço”.

Orsini é um nome predominantemente masculino, de origem italiana, derivado do latín ursinus, que significa urso descrevendo a suposta força do portador do nome. A palavra “urso” é uma designação comum utilizada para fazer referência a um animal mamífero, que faz parte da família dos ursídeos. São plantígrados, ou seja, quando andam, tocam o chão com toda a planta dos pés.
Urso não representa somente um animal. A Constelação Ursa Maior, uma das mais antigas e conhecidas traz inumeráveis lendas de diversas culturas e países. Suas sete estrelas brilhantes que desenham um quadrado e uma cauda são sempre visíveis nas noites de quase todo o hemisfério norte – constelação circumpolar.

Para os chineses as sete estrelas representavam uma concha que oferecia comida nos tempos de fome – chamavam-lhe “Pei to”, concha medidora do norte; para os hebreus também se assemelhava a uma gigantesca concha que media as quantidades de cereal; para os povos germânicos era uma carroça puxada por três cavalos, enquanto para os britânicos era a biga (carro de duas rodas, movido por dois cavalos) do Rei Artur; para os egípcios as sete estrelas representavam a imortalidade, porque são visíveis durante todo o ano; para os índios Cherokee as estrelas representavam um grupo de caçadores que perseguia um urso desde os princípios da primavera, quando essas estrelas estão altas no céu, até ao outono, quando aparecem junto ao horizonte.

Segundo a mitologia grega, Zeus apaixonou-se por Calisto, a bela ninfa dos bosques e companheira de Ártemis. Zeus ficou de tal modo fascinado pela sua beleza que, para se aproximar dela, tomou as feições de Ártemis. Calisto acolheu Zeus sem desconfiança, mas quando reconheceu o seu erro já era tarde demais, e concebeu dele um filho, que se chamou Arcas. Hera, esposa de Zeus, ficou furiosa e castigou Calisto, transformando-a numa ursa. Um dia, a irreconhecível Calisto e Arcas encontraram-se. Calisto abriu os braços para acolher o filho mas este, julgando-se atacado pela gigantesca ursa, preparou-se para a matar. À última da hora, Zeus evitou a tragédia e transformou Arcas num pequeno urso, arrastando ambos para os céus. Hera, contudo, empurrou os dois para perto do Polo Norte onde as estrelas são sempre visíveis – mãe e filho nunca teriam descanso. Arcturo, a brilhante estrela do Boieiro ficou de guarda às ursas para que não se afastassem do gélido polo.

O asterismo da Ursa Maior é muito útil para nos orientarmos à noite: prolongando cinco vezes a distância entre as guardas da Ursa Maior (as duas estrelas que aparecem na “ponta” da caçarola”) encontra-se a estrela polar, a estrela da cauda da Ursa Menor, que nos indica o Norte.

Realmente, os seus pais não poderiam ter escolhido nomes melhores. Marco Antônio Orsini, guerreiro que se alimenta de flores, digno de apreço, com a planta bem fincada no solo, é um apaixonado pela medicina e pela vida. Não é somente um mestre. Ele é um mentor cujas estrelas guia sempre indicam o norte, em todos os atos da vida humana, especialmente naquele do cuidar do outro.

O que mais tenho aprendido com Marco Antônio Orsini? A arte de viver e de amar cada momento especial de nossas vidas, com esperança. É possível não viver na plenitude das nossas capacidades físicas, mas apesar de tudo, é possível levar existências válidas e muito felizes. Não tenho mais medos.

“Com ele tenho até aprendido a gostar um pouco do Flamengo”.

Querido amigo e professor Marco Orsini, muito obrigado.