Marco Orsini é MD PhD Médico com Formação em Neurologia- UFF. Professor Titular da Universidade de Vassouras e UNIG. Professor Pesquisador da Pós-Graduação em Neurologia – UFF.

Sempre percorremos como andarilhos as ruas de Icaraí e, na maioria das vezes, os detalhes da sociedade não me passam despercebidos. Estava um menino com os pés desnudos de proteção, com as solas caliginosas e toldadas pela miséria. É uma espécie de ritual que tento me blindar diariamente. No entanto, não consigo tomar um café com meus filhos e cerrar meus olhos a tamanho abandono. Aproximamos de modo a preservar o distanciamento por conta da pandemia, mas a conter uma vontade imensa de acolhe-lo, como faço com todas as pessoas que quero bem.

Perguntei ao menino:
– O que você deseja?
Sem titubear respondeu:
– Tio, um par de sandálias.

A este pedido quase em tom de súplica fez-nos comprar as sandálias.

Aproveitei a oportunidade vivida por meus pequenos, perguntei ao João e ao Bento por que o menino pedia sandálias. Cada um respondeu de acordo com as suas fases de desenvolvimento psicoemocional.

Disse-me, João:
– Pai, para não ficar com frio nos pés.
Enquanto Bento:
– Para não ser picado por escorpiões e outros bichos.

Bento sempre com suas sacadas de escorpiões. Agora cismou de ser chefe de cozinha – já está matriculado.

Essa cena trouxe-me à lembrança dos professores Melo Reis, Araújo Leite e De Freitas – ali estava um exemplo da injustiça e de invisibilidade social que vive uma parte significativa de nossa gente, e também, os motivos urgentes para um novo modelo de sociedade. Para além da crueza do momento veio-me o alerta de São Thomás de Aquino: “Tudo que jogamos contra o vento vem ao nosso encontro”. Mas, antes de prosseguir gostaria de enviar um abraço virtual e afetuosos a um mestre da vida, Olímpio Peçanha, pertencente a grei de Harold Gillies, o pioneiro da cirurgia plástica reconstrutiva. O doutor Olímpio inspira poemas em corpos humanos como os famosos escultores em mármore com seus cinzéis e buris. Além das nobres e habilidosas mãos possuí um imenso coração, à disposição de quem necessita, um aliado incondicional do ser humano.
Espanto-me como a sociedade que não repara esses adolescentes que se encontram numa linha tênue entre ser humilhado e aceitar, a sorte de uma oportunidade de emprego ou serem acolhidos por descaminhos que a sociedade que não os acolhe, repudia. A classe média tem uma capacidade cínica de não olhar. Não é à toa que essa geração cria por eles um desrespeito mútuo. Bolsas e outros apetrechos eles “conquistam” como troféus, mas não possuem o que deveria importar, uma moedinha cunhada no lado esquerdo do peito chamada empatia. O jovem ganhou sua sandália e dia depois já não estava com elas…

O descaso com a condição social é evidência da sociedade fragmentada em classe e com a alma habitada por um racismo estrutural impiedoso. Não me venham com esta afirmação de que não somos cheios de preconceitos… somos, e é notório. Parece-me uma espécie de binômio da vida do tipo vamos fazer tudo para viver ou deixa morrer.

O João me perguntou também, por que os pobres e os mendigos não têm coronavírus?

Respondi-lhe:

– Filho, eles têm sim, alguns morrem pelas ruas e outros se curam espontaneamente. Existe um detalhe João, as pessoas não chegam perto dos mendigos, nem sequer os olham, por isso é tão difícil explicar a você.

Infelizmente, a nossa sociedade é estruturada num sistema arcaico com o crivo da divisão de classe e de raça. Desumanizamos a figura do “outro” até ao ponto de torná-los invisíveis e não mais nos preocuparmos como ele. Isso ocorre diariamente e em proporções desmesuradas. Aumenta de acordo com os casos da pandemia. Hoje, conversei durante alguns minutos com o professor Marcos de Freitas sobre estas mazelas – trouxe-me um alívio anímico por me fazer compreender melhor a situação que vivemos.

O Estado age de forma classista e humilhante, pois quer exigir cuidados individuais de quem nunca sequer foi olhado. Digo por vivencia, olho no olho, muito antes da pandemia – desde que suas mães estavam em período gestacional. As pessoas não possuem água potável, vasos sanitários, pias com água corrente; e ainda querem falar de máscaras protetoras! As crianças não possuem chinelos e querem falar de jovem aprendiz! As crianças não possuem escolas e querem dar os raros exemplos de grandes intelectuais que emergiram da pobreza.

Não podemos esquecer, no entanto, que há inúmeras atitudes desumanas que fazem parte do cotidiano de milhões de crianças, sejam elas ricas ou pobres. As pobres pela desinformação e pela própria pobreza – uma legião de despossuídos; e as ricas que podem possuir genitores distantes e permissivos em suas formações éticas e morais. A permissividade e a falta de diálogo com adolescentes e com as crianças da classe média, decerto, não irá produzir aquele menino de pés descalços, mas, certamente, poderá criar mais meninos desamparados. Existe uma infinidade de contrapontos que circundam a negligência no cerne da palavra, desde sua definição e condicionamento de responsabilidade. Existe muita criança rica e de classe média que sofre por negligência dos pais. Muitos não saberão contra-argumentar com pitadas semânticas, pois, infelizmente, não limitados intelectualmente – mas que possuem os recursos do capital. Uma parte entra na parcela do “estou vendo, mas deixa morrer”. A assim caminhamos… vamos dar exemplos exemplares – não tolos.

Queria dedicar essa crônica ao meu amigo do coração e grande profissional Fernando Miguelote. Gosto muito de sua sabedoria discreta e calada. Seu jeito de encarar as pessoas, a empatia com os amigos e as fotos com os peixes. Fernandinho, um beijo no seu coração. Deixo também o meu afago para o meu médico, professor Suassuna. No começo quieto – hoje ainda de poucas palavras, mas com um coração enorme – uma espécie de bonsai para dentro. Fiquei muito feliz de ter me reaproximado de Gabriel de Freitas, hoje o melhor especialista em doenças cerebro-vasculares. Pensava ter perdido sua amizade que foi construída com nossos pés descalços, durante algumas partidas de futebol em sua casa de Itaipava. Ainda deve ser ruim de bola, mas é um craque na medicina. Ele voltou, inicialmente meio de longe, mas está aqui acolhido em nosso grupo. Ele tem genética, além de seu imenso talento e determinação, as condições propícias para se destacar à semelhança paterna.

Deixo meu carinho também para todos os estudantes do Curso de Medicina da UNIG – àqueles que fazem iniciação à pesquisa comigo. Não poderia deixar de comentar a troca de farpas que time com um irmão que muito amo, aqueles do fundão do coração, Vinicius (Faísca). Ele e Adriano Lúcio iniciaram meu processo de formação em jiu-jitsu desde 1996. Brigamos por uma discussão sobre filhos, mas como grandes amigos aparamos as arestas e, humildemente, disse-lhe de meu sentimento fraterno por ele. Também…um faixa preta como ele…risos.

Ontem fui visitar minha mãe e pedi força, ajuda e oração.

Mãe – eu te amo.