Marco Orsini é MD PhD Médico com Formação em Neurologia- UFF. Professor Titular da Universidade de Vassouras e UNIG. Professor Pesquisador da Pós-Graduação em Neurologia – UFF.

O andar do tempo tem-me provocado uma ruminação anímica inquietante ao me impor a narrativa que emerge de meu coração em relação a dois grandes mestres e, também, amigos que a vida me ofertou. O primeiro, decerto, mais “veemente” em suas cobranças, com alternâncias verbais e nominais que lhe são peculiares, na maneira com que ladeava meus exames físicos com os pacientes e na correção de meu trabalho de doutoramento. Lembro-me com nítida clareza de uma frase proferida ao final de minha defesa de tese, em 2006: “O candidato ao título de Doutor sempre cumpriu com suas atribuições, embora falhas várias tenham sido observadas em sua arte final. Com o passar dos tempos as letras vermelhas de corretores foram se tornando azuis e, de certo modo, respeitei seu jeito de escrita. Possui uma trajetória promissora e dependente de sua vontade, pois creio ter dom”

Muitos perguntam-me como foi a inaugural aproximação do Professor Marcos de Freitas, um dos grandes nomes na neurologia do Brasil – o melhor dos mestres. Ao construir eve um dos maiores serviços de neurologia do país; e por se manter fiel aos ditos de Fernando Pessoa de que a persistência é o caminho do êxito, permitiu-lhe cuidar de modo atilado a sementeira onde vicejaram um Marco Antônio Araújo Leite, um Jano Alves de Souza, um Fábio Henrique Porto, um Gabriel de Freitas e tantos outros excelentes médicos. Diversas vezes a presença da aparente falta de sutileza em comentários era antes de tudo um desejo profundo e consciente de demudar um diagnóstico escalfado para pacientes e seus familiares.

Marcos nasceu no Rio de Janeiro, embora tenha origem em Minas Gerais, por isto o mundo cosmopolita do mar convive com o intimista das serras, a permitir a visão do mundo inteiro. A compreensão destas visões de seus mundos oceânico e circunspecto facilitou-me a nossa continuada convivência afetuosa e fraterna. Formado por um pai gerente do Banco do Brasil, definido por ele como dedicado ao extremo ao seu trabalho, que impôs a figura paterna um quadro depressivo quando a aposentadoria compulsória se fez presente; e a mãe professora de ensino médio, uma verdadeira visionária, nas próprias palavras do neurologista. Todos os filhos eram expostos muito cedo ao aprendizado da música, de línguas e da busca do conhecimento.

Creio que ninguém que se formou no Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, tenha permanecido insensível às injustiças sociais e ao desejo de um pais soberano e livre, porquanto este era o ambiente reinante à época. Ao que tudo indica sua alma está marcada de modo indelével pelo espírito liceísta da época. Em conversa íntima, algo muito raro de alguém conseguir, relatou a informação de que fora um dos fundadores, juntamente com seu colega de turma, o James Pitágoras de Mattos, do Cine Clube da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Filmes com veias artísticas, bordados de cultura e entrelaçados com sociologia preenchiam o farto cardápio. Ao final todos se reuniam e teciam, como uma renda, críticas ao desfecho final.

Penso que nossa empatia, também foi facilitada por meu genuíno desejo de aprender ao seu lado; por conseguinte, para estranheza de alguns, furtava-lhe um abraço espontâneo, não planejado, de minha imensa amorosidade pelo meu pater in pectoris.

A verdade deve imperar nessa crônica – ele não gostava muito – era desmontado – mesmo assim eu fazia. Marcos fora formado por professores como Antonio Rodrigues de Mello , do Instituto de Neurologia Deolindo Couto da UFRJ; Peter Kynaston Thomas, do Royal Free Hospital e Gerard Said, do Hôpital Bicêtre. Creio que essa fusão, junto com sua própria competência, contribuíram para torná-lo o que é para a Medicina – um incomparabilis. Compartilho desejos e vontades com meu professor. Cremos que somente a arte, a cultura e a justiça social será capaz de salvar a humanidade. Nunca reparei um Marcos Freitas ambicioso nem vaidoso, embora tenhamos as nossas, mesmo que escondidas em nossos espíritos.

Aprendi também lições de Medicina, de valores, de amor e zelo com Acary Bulle de Oliveira. Nascido em Monte Azul Paulista (nas proximidades de Barreto), terceiro de sete filhos, também foram criados pelos avós. Considerava-se um jovem livre e feliz durante a pobre infância, mas com conceitos e regras bem estabelecidos. “Se afagas um pássaro, faça retorná-lo a natureza. Se montas num cavalo, ofereça um banho, carinho e alimentação”. Uma educação do ir e voltar – creio eu com meus botões

Professor Acary fora por um bom tempo caixa de restaurante na Avenida Paulista. Não percebi, sinceramente, vergonha do outro lado da linha telefônica. Senti uma admiração enorme na medida em que ladeava os fatos e adicionava pronomes. Nesse restaurante almoçavam integrantes da Gazeta, um famoso jornal paulistano. Acary recebia as notícias fresquinhas como os frangos que servia ao grupo de jornalistas. Crê, de pés juntos, que algum dos frequentadores do restaurante pagaram-lhe um ano de supletivo para cursar o pré-vestibular.

Nada fora em vão. Formou-se em medicina na Escola Paulista de Medicina, e partiu num périplo para tornar-se médico. Realizou estágio com índios do Alto Xingu, a maior experiência que teve como ser-humano. Disse-me, em tom grave e pausado: “Orsini, me senti muito incapaz ao compreende-los, mas tinha total consciência que estavam anos luz à minha frente”. Partira, anos depois, para a Universidade de Columbia – coincidência ou não- local onde Lou Gehrig despontou como o melhor jogador de baseball. Todos nós que lidamos diariamente com pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica, conhecemos a trajetória trágica da morbidez do atleta. Acary torna-se aluno de Lewis Phillip Rolland.

Ao retornar à EPM buscava se tornar um médico de vocação, algo que já possuía e não sabia. Estudou cuidados integrativos; isso que os índios fazem com maestria. Provavelmente a razão de ser um ícone no que faz…não preciso descrever…seria cansativo. Todos os dias meu amigo diz tentar pagar suas contas com Deus, embora afirme que seu “cartão de crédito” esteja ainda robusto de dividas. Conheci a Fernanda Ceragioli, mas não seus filhos. Sei que se trata de uma amiga e esposa linda e fantástica.

Já me perguntaram se gostaria de ser igual a eles. A resposta fora rápida, lépida e conclusiva. “Lógico que não. Tenho o meu Deus, os meus filhos, a minha forma de fazer medicina e adquiri seminais conhecimentos com meus pais e avós”. O que levo de Marcos e Acary? Conhecimento médico, lições, correções, cultura, amorosidade, sensação de ser médico é um compromisso de uma vida inteira. E quando achar que sou um bom médico, abaixar a cabeça e voltar para os estudos. E sempre…E sempre. Eles não param de estudar, mas eu vou atrás, como a vida permite. Levo o meu dom, meu esforço, minha estória e meus artigos. Volto e refaço o dever de casa.

Quando me perguntam “se as pessoas possuem inveja de mim”, de pronto respondo não sei. Mas, penso que, caso tenham, somente encontro motivo pelo fato de ser amigo dos grandes nomes da Medicina; e esses que a cada dia que a vida me proporciona, qualifica-me como ser humano.