Certa vez, ainda adolescente, fui a uma consulta médica com a Dra. Loan Towersey. Ela sempre foi uma dermatologista calada, mas de coração enorme. O uso contínuo de corticoides provocou-me, como esperado, algumas lesões devido a candidíase nas coxas, que eram pioradas pelo calor e a umidade das calças de jiu-jítsu. Este esporte salvou-me da depressão – e que ainda me acude. Comentei com ela que queria ser médico neurologista. Ser melhor no amor, na dor e na arte de ofertar o máximo para os pacientes – tipo dias melhores. Doutora Loan, como a chamava, escrevia uma letra que não consegui decifrar, mas no final estava.
“Professor Marcos RG de Freitas – gostaria que levasse meu pedido em consideração”.
Caminhei, logo após minha consulta, em direção ao consultório de Marcos. Não tinha a menor ideia de quem seria e o que representava. Esperei alguns minutos e fui atendido. Estranho seria se eu não tivesse me tornado seu ardoroso admirador, apesar de suas piadas e não poucas ironias. “Sofri” muito com seus olhares durante as anamneses, os exames físicos e neurológicos, mas tudo eu assimilava.
Foram quase 12 anos ao seu lado na Universidade Federal Fluminense. Lá conclui minha capacitação e doutorado em neurologia. Do outro lado da ponte, meu mestrado e pós-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em verdade nasci na UFRJ, tornei-me neurologista pela UFF e posteriormente retornei para minha casa com o Professor Alair Pedro Ribeiro, no Instituto de Psiquiatria – IPUB – com estudos sobre Esclerose Lateral Amiotrófica e Demência Fronto-Temporal.
Estabeleci uma relação muito bonita com o Marcos. Nunca desejei ser igual a ele, nem tão pouco reproduzir a atitude reprovável de tanta gente que bebeu em sua preciosa fonte de conhecimentos, e ao final, dar-lhe às costas. Como vivenciei isto – principalmente quando a aposentadoria bateu à sua porta. Nunca mais tive coragem de retornar naquele serviço que para mim tornou-se um espaço que me emociona; tudo que fiz foi por amor incondicional para essa Escola de Medicina – nada pedi em troco – embora tenha “apanhado” em demasia de dois sujeitos. Isso é sujo para a grandeza dessa mensagem. Enfim, anotava com minúcia tudo que daquela diferenciada cachola emanava. Cabe o registro de que sempre levava comigo um gravador da marca Panasonic. Minha mãe comprou-o com dificuldade; e naquela época, as pilhas palito eram caras. Fingia ter paciência para me formar, mas não tinha condições ótimas de ter ferramentas e apetrechos que alguns tinham. Marcos conseguiu muitos eventos e congressos para eu participar gratuitamente, mesmo quando ainda estudante de medicina. Ele sempre dava um jeito para quem se esforçava.
Marcos RG de Freitas nasceu em 25 de maio de 1945, filho do Luiz Raimundo de Freitas, competente e exemplar bancário, e de Delphina de Freitas Gomes, devotada professora. Confessou-me que sua mãe era muito exigente, independentemente de seu esforço. Natural do Rio de Janeiro iniciou seus primeiros estudos nas cidades de Ubá e Além Paraíba, em Minas Gerais, onde o menino fora aos poucos tomando formato, obviamente, com o brilhantismo de seus atributos e competências cognitivas em consolidação. Em Niterói cursou o ensino médio no Colégio Liceu Nilo Peçanha – diga-se de passagem, tal “escola” também formou minha mãe. A Bety adorava professor Marcos – não preciso dizer o porquê… Seu carinho com Marco Antônio Araújo Leite e Melinho também era de grande monta. Mesmo antes de partir ele me disse:
“Filho, não esqueça do professor Marcos. O nome disso é parceria humana e reciprocidade”.
Por vezes, achava que minha mãe se esquecera que eu nasci de seu ventre. Na verdade, tínhamos dificuldades, eu e minha mãe, em atividades que envolviam concentração, tempo-espaço, memorização e outras coisas. Ela se foi, os problemas ficaram comigo. Acho que sou a pessoa que mais perde as coisas no mundo. Às vezes começo a rir de mim mesmo. Só não me perco durante as atividades do consultório; ao estudar o que gosto, e na companhia dos meus filhos. O resto todo vai ficando pelo caminho… sempre fui assim. Decerto hoje receberia algum diagnóstico da Classificação Internacional de Doença, e bem provável algum deste remédio compatível para este r. Hoje fazem coisas que até quem mora no lugar oposto à Deus duvida.
Por falar sobre essas questões de tudo perder, passei uma situação muito engraçada com Marcos ao final do ambulatório no Hospital Universitário Antônio Pedro. Ao nos dirigirmos para o carro escutamos o português da padaria aos berros:
“Professor, o senhor esqueceu algo aqui”.
Marcos respondeu: “Já sei – a chave do carro – fiz uma segunda – depois pego – deixa ela guardada ai”.
Não aguentei e voltei – não sabia que existia alguém pior do que eu. Ao chegar ao estabelecimento o senhor me entrega as chaves e um isopor que Marcos acabara de deixar por lá. Ao retornar ao carro, Marcos me olha espantado e diz: “meu Deus, a biópsia do paciente”.
Quase morri de rir. No Hospital Universitário Antônio Pedro, muitos não tinham coragem de sequer de mirar o olhar para o Professor Marcos -Chefe do Serviço; achavam que viria vítima de uma piada desconcertante; aquelas que ele fazia comigo quase todo o tempo. Pensava às vezes que o objetivo dele era me chamar de limitado, mas como estava anos luz distante de seus conhecimentos, ele ficava com pena. Assim caminhava nossa relação. Sempre que o meu humor me permitia dava-lhe um beijo em seu escalpo. Ele não gostava – por isso eu fazia. Ao falar nisto, Marcos tem uma mania horrível de desligar o celular em minhas ligações e somente ligar quando ele quiser. Coisa terrível. Comecei a estudar muito, as piadas foram parando, mas depois pioraram. Ele começou a subir o nível das perguntas que só sei lá quem sabia responder. Quando eu acertava dizia. “Orsini, obrigação, nível 1”.
Na UFRJ, sua Alma mater, formou-se e concluiu seu Mestrado e Doutorado em Neurologia, e seguida o gênio cruzaria o Atlântico e estaria a estudar em Londres o seu Pós-Doutorado. Andando o tempo, mostrava seu conhecimento ao Professor Gérald Saide, em terras parisienses. No Rio de Janeiro fora discípulo, amigo e companheiro preferido de tertúlias neurológicas, culturais, e visão de mundo do grande Professor Antonio Rodrigues de Mello. Ao falar sobre o saudoso mestre ainda o emociona até hoje, por denúncia de seu tom de voz e por suas inconfundíveis expressões faciais. O Marcos passou dos limites da excelência profissional tanto como médico quanto como professor. O Carlos Henrique Melo Reis, hoje chamado por mim de bordado búlgaro, é também um grande fenômeno da neurologia formado na grei fértil e luminosa do professor Mello. Ele também nutre sua admiração e distinto afeto, mesmo que à distância, mas por discrição que por desejo, pelo Marcos. O Melinho – também liceísta -, é um ser muito diferente que já vi na vida. Está sempre calmo e alegre, mas quando se irrita é uma vez só. Uma espécie de lenda viva – não consigo ter “munição” intelectual para iniciar nenhum assunto. Isso me deixa feliz; faz-me estudar. Creio que, na época em que estes dois eram meninos, já habitava em seus corações um sentimento de fazer algo para o bem de nosso povo, digo, para os menos favorecidos, para os desterrados em sua própria terra.
A dor pode sempre mostrar algo de bom, este é meu pensamento. Divido o meu amor com todos os pacientes. Sinto culpa de não poder fazer mais para esse grupo tão castrado de sonhos.
Desde a adolescência, Freitas albergou os ideais de que o coletivo deve ter precedência imperativa sobre o indivíduo, da igualdade de oportunidades para todos, da fraternidade entre os povos, da preservação da natureza. Considera que somente a educação igualitária de base para todos e a formação interdisciplinar sólida para os que frequentarem as universidades poderão salvar o nosso inconcluso processo civilizatório. A cultura, as artes e a ciência devem estar irmanadas para o afastamento definitivo da alienação e do permanente espírito colonial.
Como professor de Medicina, atendeu pacientes em unidade do Sistema Único de Saúde, com o intuito de estar próximo do sofrimento dos pacientes despossuídos, e cumprir sua excelsa diretriz de cidadão envolvido com os destinos de nosso povo. A indignação jamais deixou de ser sua companheira por conta das desídias de subsequentes governos. Em sua escola neurológica aprendeu que a anamnese; o exame físico e neurológico “falam” por si. Não obstante as nossas vicissitudes ele acredita que o mundo irá melhorar… sorte para nossos filhos e netos.
Dedico essa crônica ao meus amigos e professores Marco Antônio Araújo Leite e Jano Alves de Souza. Não posso esquecer de Cláudio Morales. Responsável por um laboratório que possui vida atrás dos exames. Que trata e conhece os pacientes, as dores que carreiam e ainda possui tempo de ligar e vibrar com alguns resultados. Se tornou um amigo do peito – daqueles poucos- tipo Alair Pedro Ribeiro.