Paulo Sally é Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Hoje lembrei da saudosa Bety Orsini. A crônica a qual escrevo poderia ser uma de suas inúmeras histórias. Por óbvio, sem o brilhantismo da sua pena. Bety fora um fenômeno com as palavras. Mientras, o que se passou na tarde de hoje, poderia estar no papel, como enredo, em uma de suas narrativas literárias. Saudades Bety. Obrigado, querida. Figuras como fonte de minhas saudáveis inspirações.

Chovia canivetes, quando liguei para minha mãe convidando-me: – Vamos tomar um café logo mais? – Claro, meu filho. Espero-te. Chegando na residência de Dona Wanda, sou surpreendido. Mesa posta para receber a dinastia Habsburgo. Xícaras, pires, colheres e guardanapos eram adornos de dar inveja aos frequentadores de Versalhes. Quitutes preciosíssimos. Frutas, pães, geleias e queijos, todos importados. A louça era a do seu casamento (!975) – presente que fora lhe dado por algum Senador da República. Achei aquilo tudo muito estranho. Apesar do capricho regular da anfitriã, havia algo de diferente naquele lanche.

Iniciadas as conversas a mesa, os tons primevos eram de puras amenidades. Nada de novo. Quando a sobremesa começou a ser degustada, ouço a seguinte chamada: – Filho, gostaria de conversar acerca da minha herança. Consultei um amigo advogado, e estou decidida: quero adiantar a minha legítima! Continua; não quero que você e seu irmão tenham trabalho com esse tal de inventário. Desejo deixar tudo resolvido. Pessoas próximas a mim já assim procederam, e gostaria muito de fazer de forma idêntica. Nada de divisões pos mortem. Mirando-a de forma um pouco incrédula e jocosa, disse-lhe: – Mãe, deixa disso! Nada que não se possa ser resolvido ao seu tempo. Impassível e irredutível sentenciou: De nenhuma maneira! Já me decidi! Irei fazê-lo e pronto.

Não havia motivos para discordâncias. A decisão já estava exarada. Partilha em vida. Sem debates alongados, progrediu a matrona: – ocorre Paulo José, que preciso de um favor. Mirei-a com curiosidade e simultaneamente indaguei: – qual? – Então, gostaria que você me desse um desconto no quanto que lhe cabe a receber. – O que? Como assim, mamãe? – Pois é, fazendo umas contas, queria saber se me darias um abatimento no quanto tens a perceber. Atônito e desconfiando da senilidade da minha genitora, progrediu ela com o discurso da divisão de seu patrimônio. Abriu seu telefone celular e passou a consultar suas inúmeras aplicações financeiras. CDBs, debentures, ações, Bdrs, fundos imobiliários e outras mais. Rendas fixas e variáveis. Criptomoedas e até uma pirâmide que segundo a investidora, lhe confere uma bagatela de 22% de retorno mensal.

Tudo estava anotado a lápis, em uma agenda da Amperj de 2011. Guardado os seus alfarrábios em uma pasta amarela, presa por um plástico. Dona Wanda parecia cultivar tal obsessão desde o século passado. Diante daquele hilariante espetáculo, indaguei-a: – mãe, qual a proposta? Disse-me no maior dos deslavamentos; – pensei em lhe dar a metade. Que tal? Ótimo negócio. Recebes agora o seu quinhão, para seu gozo e fruição. – Mãe, você ficou biruta? Metade?! Por que isso? Sem atenção a minha segunda interrogação, emendou: – tudo bem, 30% então. Ademais, o desconto de um pouco menos de 1/3 do valor, é uma pechincha. Não tem como negar. Num sem-pulo arrebatou, antes até de uma resposta; – deixa de ser avarento! Por tudo que lhe fiz, nada mais justo. Sem lhe dar uma resposta definitiva, terminei de passar a manteiga no pão e prometi-lhe que iria refletir com carinho sobre o delicado assunto.