Marco Orsini é MD PhD Médico com Formação em Neurologia- UFF. Professor Titular da Universidade de Vassouras e UNIG. Professor Pesquisador da Pós-Graduação em Neurologia – UFF.

Ontem percebi que vovó estava escondendo suas economias dentro de meias-calças. Liguei para um primo que não segue a mesma linhagem do meu DNA, mas é meu primo. Não de sangue, mas é. É meu primo – assim lhes apresento- pois o que circunda suas decisões é uma miscelânea que envolve compromisso social, caráter, empatia e inteligência. Paulo José é um promotor que parece ser brabo, mas até hoje não rugiu ou mostrou os dentes- pelo menos para mim. Passamos poucas e boas juntos; inclusive aquela nossa estória da injeção quando lhe roubaram o carro, onde fui até a 77 DP, carimbar-lhe as nádegas ante a um problema em sua lombar. Emblemática estória – só nossa. Palinha, apelido de PJ, me lembra aqueles xerifes quando de terno e gravata, mas assim como eu gosta de uma boa bermuda surrada com camisas gastas. Nos respeitamos bastante, provavelmente por sermos ou termos alguma forma de sintonia fina. “Paulo, sinceramente, nenhum neto fica confortável com tal atitude”. Ele me lembrou, durante nossas sempre agradáveis conversas, do personagem Palhares, de Nelson Rodrigues – o canalha honesto, da qual Nelson nos dizia que um dia sentiríamos falta em nossa sociedade.

Maria Amélia, minha avó, sempre teve brigas homéricas com a minha mãe, muitas relacionadas ao capital. Penso que os velinhos acreditam que ter economias não os fará refém de asilos ou de maus-tratos; que terão um porto seguro para algo que não sei exatamente o significado para eles.

Verdade é que ao comprar a minha primeira sala comercial vovó me deu um bom dinheiro, obviamente, além dos mimos e carinhos que trocamos entre nós. Em contrapartida, existe algo naquela cabecinha que parece desconfiar da minha integridade. Há anos sempre fui responsável por sacar cerca de 800 reais por mês de sua aposentadoria; dinheiro destinado para gastar com seus remédios, netos, na casa e, obviamente, em nada que não fosse dela e para ela. Aqui em casa tudo é mais ou menos gerenciado por mim, mesmo não conseguindo fazer o melhor. Há tempos. ela não tem mais economia – seus cartões e notas entrelaçadas de dinheiros contados sumiram. Não sei para onde – desapareceram. Hoje é incapaz de comprar sequer uma barra de chocolate para os netos. De repente alguém entra aqui e lhe dá dinheiro. De repente sussurram: “guarde, pois senão serás roubada”.

Ela recebe tortas diárias, sucos de abacaxi com gengibre, pratos congelados, remédios, roupas – sem contar com nossa presença física, emocional e espiritual. Mesmo com tudo isso foi omissa em ocasiões como naquela em que fui acusado covardemente de espancar um cachorro em sua antiga casa. Ele era uma espécie de salsichinha, chamava-se Dudu, aquela raça de “amortecedores”. Dentre essas passagens, existiu aquela emblemática onde esqueci de pagar 1 mês de seu seguro saúde e fui chamado de irresponsável por muitos. Família é um grupo de gente que parece um novelo de interesses. Minha mãe faleceu – ficamos sós- graças a Deus.

Na verdade minha família, desde que era pequeno, taxava-me como um ponto fora da curva. Acreditam que eu possuía um grau de autismo – uma espécie de inteligência direcionada para a medicina e tarefas curtas. Em vista disso, não poupavam de me chamar de maluco. Hoje isso me deixa feliz por dentro – é bom ser taxado de maluco num mundo dotado de tantos falsos bons de caráter. Eu prefiro os canalhas assumidos. Vovó, simplesmente cala-se e, obviamente, nunca se opôs às criticas que eu recebia; provavelmente por medo ou mesmo conivência. Meu avô não era assim… ele era bem diferente. Essas lembranças ficam marcadas. Me pergunto: “Como iria “furtar” uma das pessoas que mais amo e mora conosco desde o falecimento de meu avô? Uma senhorinha que fez de tudo e mais um pouco por mim”.

Família é algo gozado. Até um neurologista de araque fora chamado para dar um parecer neurológico nos últimos dias de vida da Bety. Uma espécie de doutor Hollywood que engana quem lhes permite ser enganado. Os médicos yuppies em geral possuem formação universitária, trabalham em suas profissões de formação e seguem as últimas tendências da moda – embora não saibam sobre a alma humana e tratamentos médicos. Podem até acertar diagnósticos, por sorte, ou mesmo pela facilidade dos casos, embora gostem de criá-los e fazer deles, uma verdade mentirosa.

Altamente influenciados por um ambiente competitivo nas corporações, eles freqüentemente valorizam aqueles comportamentos que descobriram serem úteis para galgar postos mais altos e, por consequência, maior renda e status.

Frequentemente levam seus valores corporativos para o lar, para as esposas e filhos.
De acordo com o estereótipo, existe um discreto ar de informalidade; ainda que haja uma série de atividades regulares de grande parte dos mesmos, desde a prática de squash, golfe e tênis até almoçar em casas de sushi ou em bares da moda que servem coquetéis. Graças a Deus minha amiga e excelente médica assumiu o caso e minha mãe se livrou dessa tralha.

Eu sempre acho que na vida muitas pessoas vivem tão mal, mais tão mal, que nem sabem a gravidade que representam para a sociedade. Fico pensando assim; que às vezes na vida o ensinamento mais doido seja esse; quando já não temos mais a oportunidade de fazer alguma coisa, eis que surge o inferno, a impossibilidade de mudar qualquer situação. E quando as pessoas morrem já não existe o que dizer, porque mortos não podem perdoar, mortos não podem sorrir, mortos não podem amar. E, eu descobri com a morte da minha mãe e, infelizmente, com o silêncio da minha avó, que não tenho o direito de esperar amanhã que amo essa velinha mesmo sendo assim desse jeito. Você é especial Maria Amélia Orsini. Por que geralmente é assim minha gente. Quando o outro vai embora é que a gente descobre o tamanho do espaço que ele ocupava.

Dedico essa crônica para meu primo Paulo José e meus filhos, João e Bento Orsini. Para Gui também, um moleque bom de guarda e passador. Tem futuro no jiu-jítsu.